Resenha: “Pacientes que curam”

Livro da médica e cantora mineira Júlia Rocha é uma obra absolutamente necessária

NINGUÉM ME PERGUNTOU...
3 min readJun 22, 2021

Sabe quando você recebe alguns poucos amigos em casa e, no meio deles, sempre tem aquela pessoa que domina a roda por horas, simplesmente por ter e saber contar as melhores histórias? Pois posso dizer que a médica e cantora mineira Júlia Rocha fez isso aqui em casa por alguns dias.

Digo isso porque foi assim que eu me senti ao ler seu livro “Pacientes que curam — O cotidiano de uma médica do SUS”. Acomodado no meu sofá, foi difícil desgrudar os olhos da Júlia — que bacana seria se fossem os ouvidos também, de preferência ao vivo, numa roda de amigos — enquanto ela narrava todas as suas histórias impressionantes.

E antes de continuar, é preciso esclarecer: obviamente, quando falo em “melhores histórias” ou “histórias impressionantes”, não necessariamente precisam ser as mais surpreendentes ou engraçadas. Um relato triste também pode ser uma grande história. E “Pacientes que curam” está repleto deles.

O livro não segue uma cronologia. É um compilado de 74 capítulos, todos bem curtos, com média de 3 páginas.

Cada capítulo é dedicado à história de algum paciente ou família com quem Júlia teve interações. E todos eles trazem reflexões da autora, especialmente alguns poucos em que ela abre de forma livre e corajosa alguns aspectos de sua vida pessoal.

Você pode abrir o livro tranquilamente em qualquer um dos capítulos e se deparar com uma pílula de humanidade, de uma profissional da saúde que confere às ciências biológicas e sociais o mesmo peso.

Importante lembrar, especialmente nos dias de hoje, que estou falando de uma médica. E que muitos colegas de profissão de Júlia, recentemente, andaram defendendo um tratamento precoce que só serve pra agravar a maior crise sanitária vivida no mundo em muitas gerações. Da mesma forma que, poucos anos atrás, se amontoaram em aeroportos — provavelmente os mesmos “profissionais” — , pra xingar médicos cubanos que vieram ao Brasil pra salvar vidas de pessoas em rincões completamente desassistidos pelo país.

Mas assim como outros muitos de sua classe profissional, Júlia é o oposto disso tudo aí, tá okey! Ela não se coloca em um pedestal. E não usa seu diploma como símbolo de status social. Ou como uma mera licença pra dar aquele diagnóstico maroto de virose.

Júlia pratica a medicina com atenção e amor. Faz a ponte entre sintomas e possíveis causas pra, aí sim, poder focar no caminho em direção à cura. Que não necessariamente precisa vir de alguma composição química desenvolvida pela multibilionária indústria farmacêutica.

O livro mostra, também, que mesmo a cura nem sempre é o caminho. Pelo simples fato de que, muitas vezes, ela é impossível. E que, nestes casos, o caminho está no conforto e na dignidade do paciente e de seus familiares.

A ternura que a Dra. Júlia passa às pessoas das quais cuida se reflete claramente no texto da escritora Júlia: coloquial e delicioso de ler. Realmente como se ela estivesse numa sala de estar com amigos contando sobre seu cotidiano.

Em “Pacientes que curam”, a realidade é jogada na cara. Mas contar histórias é uma arte. E Júlia, que é médica por formação e artista por natureza, faz isso com maestria, mesmo tratando de temas delicadíssimos.

Pra finalizar, é preciso dar um depoimento pessoal: essa resenha era pra ser só sobre “Pacientes que curam”. Mas li esse livro logo depois de “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. E não tenho dúvidas de que isso fez uma diferença brutal.

Pois se não estivessem separadas por 60 anos de diferença, Carolina e Júlia poderiam ter se cruzado na vida como paciente e médica.

O livro de Júlia tem muitas Carolinas Marias de Jesus entre seus personagens. E o mais chocante disso é que as Carolinas dos anos 2000 sofrem das mesmas mazelas que sofria a Carolina original, lá nas décadas de 1950 e 1960.

Ler as duas obras nessa sequência só me fez pensar uma coisa: pouco evoluímos no Brasil. O caminho ainda é longo e duro. E diante dos muitos retrocessos dos últimos anos, desde quando nossa democracia começou a ser atacada, parece ficar ainda mais complicado.

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POR RAPHAEL CRESPO: PAI | CARIOCA EM BH | JORNALISTA | FLAMENGUISTA | ANTIFASCISTA | LEITOR COMPULSIVO | DO METAL À MPB